Maurício Ayer

Resumo em 5 pontos

  1. Cadeia produtiva é um conceito aplicado à gestão administrativa que deve ser também utilizado para pensar os direitos humanos.
  2. Segundo os Princípios Orientadores da ONU, as empresas de uma mesma cadeia de valor são corresponsáveis ou mesmo cúmplices das violações de direitos que ocorrem nela.
  3. A opacidade (falta de transparência) é um dos principais obstáculos para o combate às violações de direitos humanos que ocorrem em etapas pouco visíveis das cadeias produtivas.
  4. Transparência e rastreabilidade são pontos chave para reverter este quadro e assegurar a plena proteção de direitos humanos e ambientais.
  5. O combate às violações requer um trabalho conjunto de sindicatos rurais, Ministério Público, organizações civis, órgãos governamentais fiscalizadores, população civil, consumidores e as próprias empresas.

Segundo o Ministério da Economia, cadeia produtiva “é o conjunto de atividades que se articulam progressivamente desde os insumos básicos até o produto final, incluindo distribuição e comercialização, constituindo-se em segmentos (elos) de uma corrente”. O ministério destaca que o uso deste conceito permite:

(i) visualizar a cadeia de modo integral; (ii) identificar debilidades e potencialidades nos elos; (iii) motivar articulação solidária dos elos; (iv) identificar gargalos, elos faltantes e estrangulamentos; (v) identificar os elos dinâmicos, em adição à compreensão dos mercados, que trazem movimento às transações na cadeia produtiva; (vi) maximizar a eficácia político-administrativa por meio do consenso em torno dos agentes envolvidos; (vii) identificar fatores e condicionantes da competitividade em cada segmento.

Esta definição, embora correta do ponto de vista econômico e administrativo, deixa de destacar os aspectos de direitos humanos e ambientais envolvidos nas chamadas cadeias de valor. Se é possível “motivar articulação solidária dos elos” em busca de uma maior eficácia para maximizar a rentabilidade, a consciência dessa rede deveria também produzir uma maior eficácia na fiscalização e aplicação das leis trabalhistas, ambientais e de terras.

A importância de pensar as cadeias produtivas ou cadeias de valor na perspectiva dos direitos humanos é que este conceito permite buscar transparência nas relações humanas e nos processos envolvidos em cada produto que circula na sociedade, aí incluídas todas as etapas que antecedem a comercialização da mercadoria. Isso envolve todos os produtos que corriqueiramente são consumidos nos mercados e lojas de qualquer centro urbano, no Brasil ou no exterior. O que isso significa?

Quando a gente vai a uma loja de roupas, é possível que veja uma situação que parece correta: funcionários e funcionárias contratadas segundo as leis trabalhistas, um ambiente respeitoso e adequado e até um discurso pró-meio ambiente. Agora, como assegurar que o algodão ou o couro que foi matéria-prima para aquelas peças de roupa foi produzido por trabalhadores que tiveram seus direitos plenamente assegurados e que não foi resultado de um tipo predatório de agricultura ou pecuária? Se formos informados de que foi utilizado trabalho informal ou mesmo trabalho escravo na confecção daquelas peças, podemos nos recusar a comprá-las e denunciar essa violação de direitos.

A opacidade (falta de transparência) é um dos principais obstáculos para o combate às violações de direitos humanos que ocorrem em etapas pouco visíveis da produção. Para muitas empresas, pode ser uma estratégia para manter situações lucrativas com um alto custo para pessoas na outra ponta do processo.

Já existem marcos internacionais com o potencial de transformar a cultura corporativa nesse campo. Em junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou por consenso os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, que desde então vêm sendo uma referência para governos, organizações da sociedade civil (OSCs) e empresas.

Há uma tendência de que novas legislações passem a regulamentar as cadeias produtivas criando marcos legais de responsabilidade compartilhada entre empresas e outros atores. Países como Reino Unido e Austrália já avançaram neste sentido, com leis recentes que se inspiram nos Princípios da ONU.

Violações mais frequentes

Entre as violações aos direitos humanos mais frequentes na realidade brasileira estão:

  • Relações de trabalho informal, análogas à escravidão, degradantes ou de todo modo incapazes de assegurar a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras e suas famílias. Contratos que vigoram apenas durante a safra com remuneração excessivamente baixa são exemplos de degradação das condições de vida dos trabalhadores.
  • A vulnerabilidade das trabalhadoras é, como regra, maior, pois historicamente são elas as responsáveis pelo cuidado com os filhos e com os entes mais velhos da família.
  • Práticas de trabalho nocivas à saúde, como a aplicação de agrotóxicos sem equipamentos de proteção adequados.
  • Condições de trabalho degradantes, sem acesso suficiente a banheiros, áreas adequadas para alimentação etc.
  • Dificultar ou impedir a formação de sindicatos e outras organizações, com perseguição e demissão de lideranças, entre outras formas de abuso e violência.
  • Áreas de cultivo agrícola ou de pecuária localizadas em território de populações tradicionais, como povos indígenas e comunidades quilombolas.
  • Práticas agrícolas danosas ao meio ambiente.

Transparência e rastreabilidade

A chave para que as cadeias de valor funcionem de maneira positiva na garantia dos direitos humanos e ambientais, em que o direito à terra pode ser um elemento crucial, é a transparência e rastreabilidade. Ou seja, se for possível saber o caminho percorrido por cada produto desde a sua origem até o consumidor final, então será possível fiscalizar e assegurar o pleno cumprimento das leis.

Em muitos países – seja por serem constrangidas pelas leis, seja por suas próprias políticas corporativas –, as empresas comprometem-se a dar plena transparência e rastreabilidade às suas cadeias produtivas. No Brasil, a regra ainda é a opacidade, mesmo no caso de empresas.

O Estado brasileiro tem leis e instituições para combater o trabalho escravo e os crimes ambientais, além da regulação, resolução e mediação de conflitos de terra. Porém, nem sempre esses mecanismos conseguem ser efetivos. Exigir das empresas – sobretudo as maiores, como as megacorporações do setor de alimentos e abastecimento – que tenham uma política de transparência em relação a suas cadeias pode ser tão importante quanto fortalecer as estruturas de Estado.

Diversas são as instituições que se mobilizam em torno da luta pela erradicação dos diversos abusos nas relações trabalhistas e ambientais no campo. Na ponta, estão os sindicatos rurais e movimentos de trabalhadores do campo. Os órgãos de fiscalização, tanto nos próprios ministérios quanto em instituições independentes como o Ministério Público Federal também atuam dentro de suas atribuições e limites.

Somam-se a este esforço as organizações da sociedade civil, nacionais e internacionais, que procuram incidir de diversas maneiras, tanto em campanhas voltadas ao público em geral quanto em esforços de incidência em órgãos do Executivo e do Legislativo.  Há ainda a imprensa, que pode e deve exercer o papel de denunciar e dar visibilidade aos crimes e abusos. E, também, diversas pessoas e instituições no meio acadêmico, que produzem conhecimento e informação.

A transparência busca também permitir que os consumidores exerçam pressão sobre as empresas. A criação de solidariedade entre consumidores urbanos e trabalhadores no campo é um elemento chave na efetividade das ações, tanto para pressionar os poderes públicos a cumprirem o seu papel fiscalizador e punitivo dos abusos e a fazerem avançar a legislação quanto para pressionar as grandes empresas a assegurarem relações justas em todas as cadeias de valor das quais participam.

Para saber mais

Para entender a realidade de trabalhadores que têm os seus direitos violados em cadeias de valor bem próximas de todos nós – pois são produtos que consumimos nos mercados –, vale a pena assistir ao filme Frutas Doces, Vidas Amargas, produzido pela Oxfam Brasil. O relatório detalhado com o mesmo título pode ser obtido aqui.

O documento das Nações Unidas citado acima pode ser obtido no site da Conectas, responsável pela publicação desta tradução comentada: Empresas e Direitos Humanos: Parâmetros da ONU para Proteger, Respeitar e Reparar.

Maurício Ayer

Resumo em 5 pontos

  1. A primeira responsabilidade de cada elo de uma cadeia produtiva é, evidentemente, com suas próprias atividades, devendo respeitar todas as leis aplicáveis e todos os direitos humanos, tal como definidos internacionalmente.
  2. As empresas são corresponsáveis sobre suas relações comerciais ou atividades nas quais estejam envolvidas de alguma forma, direta ou indiretamente.
  3. Alguns documentos internacionais são o resultado de décadas de debates e discussões e hoje servem como referência para os países, organizações e empresas, como os Princípios da ONU para Empresas e Direitos Humanos e o Guia de Devida Diligência para Empresas Responsáveis da OCDE.
  4. O grau de responsabilidade de cada empresa em relação a outros elos da cadeia aumenta pela proximidade, pelo volume de operação e pela gravidade da violação do direito.
  5. A aplicação do conceito de devida diligência pode impactar fortemente as cadeias produtivas.

Segundo a compreensão atual, há solidariedade entre os elos de uma cadeia produtiva no que se refere aos direitos humanos. Afinal, estamos falando de uma cadeia de valores, na qual há empresas que ganham em cada um das etapas, então só podemos reconhecer que esta é também uma cadeia de responsabilidades. A empresa que está lá no final da cadeia, que comercializa o produto para o consumidor final, também se beneficia com a superexploração dos trabalhadores ou o desrespeito ao meio ambiente que aconteceu lá no início, quando foi produzida a matéria-prima.

Um exemplo: a manga que você encontra em um mercado na sua cidade. Segundo a Oxfam (veja o relatório), os trabalhadores das fazendas de frutas estão entre os 20% mais pobres do país e o que recebem são verdadeiros salários de fome. Claro que o supermercado que vende essas frutas lucra e muito comprando fruta mais barata de um produtor que violou direitos humanos de seus trabalhadores. As duas pontas da cadeia podem estar a milhares de quilômetros de distância uma da outra, ou mesmo em países diferentes. Não importa: há um ganho comum, e uma responsabilidade comum também.

Essa compreensão é o resultado de décadas de debates e lutas, que se consolidaram em um documento aprovado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em junho de 2011: Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, que estabelece parâmetros para proteger e respeitar os direitos e reparar em casos em que a violação já ocorreu.

Qual a responsabilidade de cada elo?

Evidentemente, tudo começa “dentro de casa”. Cada empresa tem o dever de respeitar direitos e cumprir todas as leis aplicáveis ao exercício de suas atividades. Os funcionários contratados por uma empresa são responsabilidade direta dela, tal como está expresso em toda a legislação brasileira, em especial na CLT. A empresa também não pode provocar violações de direitos de outras pessoas pelos exercício de suas atividades, como invadir terras indígenas ou quilombolas, ou descumprir as leis ambientais, poluir águas etc.

Mas os Princípios da ONU vão além e definem que as empresas devem zelar também pela conduta de seus parceiros comerciais ou outras empresas e pessoas que tenham alguma relação com a sua atividade econômica. Diz o princípio 13:

A responsabilidade de respeitar os direitos humanos exige que as empresas:

  1. Evitem que suas próprias atividades gerem impactos negativos sobre direitos humanos ou para estes con­tribuam, bem como enfrentem essas consequências quando vierem a ocorrer;
  2. Busquem prevenir ou mitigar os impactos negativos sobre os direitos humanos diretamente relacionadas com operações, produtos ou serviços prestados por suas relações comerciais, inclusive quando não tenham contribuído para gerá-los.

Mesmo que “não tenham contribuído para gerar [os impactos negativos sobre os direitos humanos]”, a empresa deve buscar prevenir ou mitigar esses impactos de suas relações comerciais. Surge então a questão de como estabelecer prioridades de ação, ou como atribuir um grau de responsabilidade no caso de outros elos de uma cadeia. Sobre isso, leia o princípio 14:

A responsabilidade das empresas de respeitar os direi­tos humanos aplica-se a todas as empresas indepen­dentemente de seu tamanho, setor, contexto operacio­nal, proprietário e estrutura. No entanto, a magnitude e a complexidade dos meios dispostos pelas empresas para assumir essa responsabilidade pode variar em fun­ção desses fatores e da gravidade dos impactos nega­tivos das atividades da empresa sobre os direitos hu­manos.

Então o primeiro fator a ser considerado é a própria capacidade da empresa de assumir a responsabilidade, pela “magnitude e complexidade dos meios dispostos” por ela. Ou seja, uma grande empresa não pode de modo algum deixar de se responsabilizar. Os outros fatores podem ser resumidos em três pontos: o grau de responsabilidade de uma empresa com relação a outros elos da cadeia vai aumentar:

  1. quanto mais próxima for a sua relação com este outro elo;
  2. quanto mais relevante essa relação for em termos de volume;
  3. quanto mais grave é a violação dos direitos humanos.

Os dois primeiros pontos parecem evidentes por ressaltar a relação de proximidade e volume com a prioridade de ação. O terceiro, no entanto, pode ser menos óbvio na  prática. Por exemplo: uma rede de supermercados compra apenas 0,1% dos insumos de sua operação de uma fazenda que escraviza pessoas ou que invade terras indígenas, inclusive envolvendo-se em ações armadas contra os indígenas. Na planilha do gestor da empresa, isso pode parecer insignificante, mas do ponto de vista dos direitos humanos, é um caso de extrema gravidade, sem margem para qualquer tipo de tolerância.

O conceito de “devida diligência” 

Se há responsabilidade solidária, então nenhuma empresa deveria poder alegar desconhecimento do que acontece com seus parceiros comerciais diretos ou indiretos. Por essa razão, os documentos de referência das organizações internacionais, das quais o Brasil é membro e signatário, passaram a utilizar o conceito de “devida diligência” (due dilligence) – que também é traduzido como “auditoria”. Significa que a empresa deve, proativamente, produzir informações sobre sua cadeia de fornecedores, identificar eventuais problemas ou violações e definir o que fazer caso a caso para resolver, mitigar ou reparar. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou o Guia para a Devida Diligência para uma Conduta Empresarial Responsável, no qual define o conceito da seguinte maneira:

A devida diligência é o processo que as empresas devem realizar para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas de como lidam com esses impactos adversos reais e potenciais em suas próprias operações, sua cadeia de fornecimento e outras relações comerciais, conforme recomendado nas Diretrizes da OCDE para EMNs.

Finalmente, na avaliação de riscos que todas as grandes empresas fazem, quando o tema é direitos humanos, deve-se considerar não o risco da empresa, mas sim o risco das pessoas e comunidades detentoras de direitos.

Para saber mais

OCDE: Guia da OCDE de devida diligência para uma conduta empresarial responsável. Tem por objetivo apoiar as empresas  na  implementação  das  Diretrizes  da  OCDE  para  Empresas  Multinacionais. Também  procura  promover  um  consenso  entre  governos  e  partes  interessadas para  uma  conduta  empresarial  responsável.

ONU: Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, definidos pelo então alto comissário para os Direitos Humanos como “o padrão global oficial” para o tema. Têm como pilares “Proteger, respeitar e remediar”.

Oxfam: “Frutas Doces Vidas Amargas” – levantamento sobre as condições de vida dos trabalhadores e das trabalhadoras safristas que atuam nas cadeias de melão, uva e manga no Nordeste. O relatório foi a base de campanha para que as grandes redes de supermercado do Brasil assumam sua responsabilidade nessa situação.

Maurício Ayer

Resumo em 5 pontos

  1. São as chamadas empresas-âncora. Pelo seu tamanho e complexidade, elas podem ser comparadas com as maiores do mundo, e muitas vezes são multinacionais.
  2. As grandes empresas de alimentos e abastecimento no Brasil têm uma operação gigantesca e suas decisões sobre seus fornecedores têm um alto impacto na realidade dos trabalhadores das cadeias produtivas.
  3. Além disso, essas empresas costumam estar expostas ao público e por isso são mais passíveis de serem pressionadas pela sociedade civil e pelos consumidores.
  4. Empresas de mesmo porte em outros lugares do mundo apresentam um grau de responsabilidade e transparência muito mais alto.
  5. A transparência em direitos humanos das empresas não pode se resumir a um relatório de sustentabilidade ou declarações genéricas, mas sim em posições públicas específicas, precisas e claras.

Muitas cadeias produtivas têm um grupo de empresas que concentram uma parte muito relevante de toda a operação, e que por isso são chamadas de empresas-âncora. É o caso do setor de alimentos e bebidas, com gigantes como JBS, Ambev, BRF, Nestlé e Coca-Cola, e do setor de abastecimento, com o GPA (antigo Grupo Pão de Açúcar), Carrefour Brasil e Grupo Big (antigo Walmart).

São empresas com operação bilionária, que empregam diretamente dezenas de milhares de funcionários, estão presentes em todo o território nacional e contratam milhares de fornecedores. Sozinhas, cada uma delas tem orçamentos maiores do que a maioria dos municípios do país e muitas são multinacionais ou controladas por grupos estrangeiros.

Não há dúvida de que as decisões que essas empresas tomam em relação aos seus fornecedores têm um impacto muito grande na realidade dos trabalhadores de toda a cadeia, muito especialmente no setor agrícola. Por exemplo: a maior compradora individual de leite in natura no Brasil é a Nestlé. Aquilo que a Nestlé exigir de seus fornecedores em relação a condições de trabalho e remuneração, política ambiental e populações tradicionais (como indígenas, quilombolas, ribeirinhas) vai ser determinante para as regiões onde estão localizados os seus fornecedores. E se forem boas exigências, pautadas não só pela legislação brasileira como também por parâmetros internacionais, podem ter um impacto positivo e melhorar a vida de muitas pessoas.

É estratégico olhar também para o setor privado

É natural pensarmos em políticas públicas quando a questão é direitos humanos. Porém, observando a realidade dessas megaempresas nas suas cadeias produtivas, fica claro como também é estratégico pressioná-las para que tenham boas políticas e transparência em relação aos direitos humanos.

Há ainda outros fatores a serem considerados: essas empresas estão muito expostas, pois geralmente lidam diretamente com o consumidor final. Portanto, tendem a responder muito mais à pressão e à exposição pública do que outros elos da cadeia produtiva que estão mais escondidos. Por exemplo: a Cutrale pode ser muito relevante na cadeia do suco de laranja, mas não é uma marca que está tão exposta quanto um Pão de Açúcar.

Mas não é só isso. Pelo seu tamanho e complexidade, essas empresas são comparáveis às maiores empresas do mundo em seus setores, logo, podem e devem ser cobradas como tais. Faz sentido que a Nestlé no Brasil tenha o mesmo nível de transparência que a Nestlé de outras partes do mundo, ou que o Pão de Açúcar seja comparado a uma rede como a gigante inglesa Tesco.

Apesar disso, no Brasil não se verifica o mesmo nível de diligência e transparência quanto à rastreabilidade dos produtos e fornecedores que se encontra em países europeus ou nos Estados Unidos. Os casos podem variar. O mais comum é que a empresa inclua declarações genéricas de compromisso com o respeito aos direitos humanos em sua página na internet, sem no entanto demonstrar como assegura materialmente que seus fornecedores respeitem direitos e mesmo sem apresentar efetivamente quem são esses fornecedores.

O Pão de Açúcar, por exemplo, coloca o QR code em diversos produtos na gôndola, dando a entender que seus produtos são plenamente rastreáveis. No entanto, a empresa não apresenta em nenhum lugar uma lista de fornecedores. A informação deve existir e estar à disposição dos gestores da empresa, mas o acesso a ela é dificultado.

Alguns exemplos

A Nestlé é bastante criticada por muitas organizações e ativistas da área de alimentação e nutrição (alguns exemplos você encontra aqui e aqui). No entanto, a empresa tem sido elogiada por sua política de transparência em relação aos seus fornecedores. Desde 2011, vem implementando no Brasil os seus planos globais de sustentabilidade, códigos de conduta, sistemas de certificação e rastreabilidade de produtores de quem compra matéria-prima. Segundo a revista Capital Econômico, o chamado Nescafé Plan “engloba hoje 690 produtores de café, todos no sistema de certificação 4C, que garante a rastreabilidade do café da fazenda à fábrica, e a sustentabilidade das fazendas por meio a aplicação de indicadores econômicos, sociais e ambientais.

Em fevereiro de 2019, a empresa anunciou que iria ampliar sua política de transparência para um total de 15 commodities, em uma iniciativa inédita para o Brasil. Isso permitiria a organizações governamentais de e da sociedade civil, inclusive sindicatos e a imprensa, exercerem o seu papel fiscalizador.

Já no que diz respeito ao GPA, o Relatório Anual e de Sustentabilidade tem um capítulo sobre “qualidade e responsabilidade na cadeia de valor”, com informações sobre “bem-estar animal”, “combate ao desmatamento”, “condições de trabalho” e “uso responsável da biodiversidade”, além de um relatório de metas. A publicação permite supor que o grupo tem um controle detalhado de seus fornecedores, mas a empresa não revela quem são e onde estão eles.

Pressionar essas empresas para que tenham um alto grau de compromisso com o respeito aos direitos humanos e que reproduzam esse compromisso em toda a sua cadeia de fornecedores é fundamental para transformar a vida dos trabalhadores no campo, do meio ambiente e das comunidades tradicionais.

Para saber mais

Site da Nestlé Brasil: Fornecedores

GPA: Relatório Anual de Sustentabilidade do GPA 2020. Segundo o grupo, dá transparência aos resultados das iniciativas de seis eixos: “Valorização da nossa gente”, “Consumo e oferta consciente”, “Gestão integrada e transparência”, “Engajamento com a sociedade”, “Gestão do impacto ambiental” e “Transformação na cadeia de valor”.

Maurício Ayer

Resumo em 5 pontos

  1. A base da garantia dos direitos humanos é todo o aparato legal e institucional do Estado brasileiro.
  2. Assegurando o que está na Constituição, na CLT, nas leis ambientais, e fortalecendo os órgãos de fiscalização, os trabalhadores e trabalhadoras do campo ficam muito menos vulneráveis a situações de abuso. O mesmo vale para as populações tradicionais e o meio ambiente.
  3. Legislações como a EC 95, conhecida como Teto de Gastos, são produtoras de vulnerabilidade social e devem ser revertidas.
  4. Leis específicas para a proteção dos direitos humanos nas cadeias produtivas podem atacar a invisibilidade dos elos menos expostos à pressão pública, por exemplo obrigando grandes empresas a terem um papel proativo na prestação de contas de suas cadeias de fornecimento.
  5. A lei britânica de combate as formas modernas de trabalho escravo, de 2015, baseada nos Princípios da ONU para Direitos Humanos e Empresas e nas orientações da OCDE para a Devida Diligência, pode ser inspiração para nova legislação no Brasil.

Quando se pensa na legislação brasileira voltada à proteção de direitos humanos nas cadeias produtivas é preciso considerar que tipo de problemas – ou que tipo de violação de direitos – pode estar em jogo. Como regra, estes problemas referem-se a questões trabalhistas, sendo nos casos mais graves as formas de trabalho análogas à escravidão, além das questões ambientais e de terra, sobretudo envolvendo populações tradicionais, como povos indígenas e comunidades quilombolas.

Outro ponto a se considerar é a invisibilidade. Faz sentido que as empresas mais poderosas e mais expostas ao julgamento público sejam pressionadas a assumir a responsabilidade por dar transparência e monitorar todos os elos de sua cadeia de valor, principalmente aqueles que de outro modo seriam totalmente invisíveis à opinião pública.

A proteção social de base vem primeiro

Diante dessas vulnerabilidades, a discussão começa abrindo o escopo. Antes de pensar as leis e instituições específicas de proteção aos direitos humanos ou de combate ao trabalho escravo, deve-se considerar o aparato institucional que assegura direitos e condições de existência dignas para os cidadãos e cidadãs. Muitas violações de direitos poderiam ser evitadas assegurando políticas públicas efetivas, como o aumento real do salário mínimo, o pleno emprego, a renda mínima e a cobertura plena de saúde e educação nas áreas rurais. Garantidos os direitos fundamentais às suas famílias, os trabalhadores e trabalhadoras ficam muito menos vulneráveis a ter que se submeter a situações aviltantes de trabalho e de vida.

A aplicação da CLT e do conjunto da Constituição Federal, pela ação de diversas instâncias de poder, como os órgãos do Poder Executivo e o Ministério Público Federal, assegura a proteção de muitos direitos. Somam-se às leis estruturantes do Estado de Direito brasileiro diversas políticas com alto potencial de reduzir vulnerabilidades. É o caso do Programa Bolsa Família.

Com a questão da terra é parecido. A Constituição Federal brasileira assegura aos povos indígenas o direito sobre suas terras, cabendo à Funai a tarefa de desenvolver os estudos necessários para o processo de demarcação. Também garante o título da terra para comunidades remanescentes de quilombos. Se este direito for assegurado, as populações tradicionais estarão muito menos vulneráveis aos riscos gerados pela atuação de empresas em sua região. Pode-se ainda mencionar o aparato legal voltado à reforma agrária e à proteção ambiental.

Legislações retrógradas que geram vulnerabilidades: o Teto de Gastos

Desde 2016, sucessivos cortes orçamentários fragilizaram as áreas voltadas à proteção dos direitos humanos. Isso culmina com a aprovação da emenda do Teto de Gastos no governo Temer, que limitou os gastos sociais federais pelo período de 20 anos, o que resulta em um arrocho intensificado ano após ano.

Muitos analistas identificam essa emenda constitucional, a EC 95, como uma das principais causas, hoje, do aumento da vulnerabilidade da classe trabalhadora. Efetivamente, ela fez colar na Constituição o controverso conceito de austeridade econômica. No governo Bolsonaro, a situação piorou. O Ministério do Trabalho foi extinto, e suas atribuições, incorporadas a outras pastas (como a da Economia e a da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). O governo federal desmobilizou equipes e reduziu ao mínimo as verbas para o combate ao trabalho escravo e aos crimes ambientais. Todas essas questões são discutidas em detalhe no livro Economia Pós-Pandemia, lançado em 2020 (ver ao fim do texto).

O que falta nas nossas leis e onde buscar inspiração

Constam na CLT as figuras jurídicas da responsabilidade solidária e da responsabilidade subsidiária. Não cabe aqui entrar em detalhes quanto a essas figuras (saiba mais aqui), apenas reconhecer que elas não se referem à corresponsabilidade entre diferentes elos de uma cadeia de fornecimento – por exemplo, a de um supermercado e dos produtores rurais que são seus fornecedores.

Por exemplo, se um produtor de leite invadiu terras indígenas ou submete seus trabalhadores a condições análogas à escravidão para criar o seu gado, a indústria de laticínios que compra esse leite não poderá ser processada. No entanto, essa indústria se beneficiou com o preço mais baixo cobrado pelo produtor de leite criminoso e deveria ser considerada cúmplice.

Alguns países avançaram mais na direção de uma responsabilidade compartilhada nas cadeias de valor, sobretudo para os elos mais fortes. Um exemplo é a Lei de Escravidão Moderna, do Reino Unido, aprovada em 2015, que foi recentemente aprimorada com a inclusão da Cláusula de Transparência nas Cadeias de Fornecimentos. A principal referência são os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos, além do Guia da OCDE sobre devida diligência para uma prática empresarial responsável. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) é uma organização econômica intergovernamental com 37 países membros.

Com base nestes mesmos referenciais, uma nova legislação brasileira poderia atribuir às empresas a obrigação de produzir informações completas e transparentes em relação às suas cadeias produtivas, retirando delas a possibilidade de alegar o desconhecimento das violações de direitos e definindo punições severas para os casos de descumprimento da lei. A responsabilidade deveria ser proporcional tanto ao peso da empresa na cadeia produtiva quanto à gravidade da violação do direito.

Segundo a OSC Conectas, o Brasil foi durante muitos anos uma referência mundial em matéria de combate ao trabalho escravo. Excluídos os recuos recentes, essa experiência qualifica o país para produzir uma legislação ainda mais ousada do que a britânica. Fundamental também será assegurar os recursos necessários para os órgãos de fiscalização, que precisam ter pessoal capacitado e em número suficiente, equipamentos, recursos de custeio e amparo das forças policiais quando necessário.

Para saber mais

Caio Borges, no site da Conectas: Por que o Brasil precisa de uma legislação de transparência na cadeia produtiva.

DWECK, Esther; ROSSI, Pedro; OLIVEIRA, Ana Luiza Matos de (org.). Economia pós-pandemia: Desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. (Link para baixar o E-book gratuito)

OCDE: Guia da OCDE de devida diligência para uma conduta empresarial responsável

ONU: Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos