Maurício Ayer
Resumo em 5 pontos
- Cadeia produtiva é um conceito aplicado à gestão administrativa que deve ser também utilizado para pensar os direitos humanos.
- Segundo os Princípios Orientadores da ONU, as empresas de uma mesma cadeia de valor são corresponsáveis ou mesmo cúmplices das violações de direitos que ocorrem nela.
- A opacidade (falta de transparência) é um dos principais obstáculos para o combate às violações de direitos humanos que ocorrem em etapas pouco visíveis das cadeias produtivas.
- Transparência e rastreabilidade são pontos chave para reverter este quadro e assegurar a plena proteção de direitos humanos e ambientais.
- O combate às violações requer um trabalho conjunto de sindicatos rurais, Ministério Público, organizações civis, órgãos governamentais fiscalizadores, população civil, consumidores e as próprias empresas.
Segundo o Ministério da Economia, cadeia produtiva “é o conjunto de atividades que se articulam progressivamente desde os insumos básicos até o produto final, incluindo distribuição e comercialização, constituindo-se em segmentos (elos) de uma corrente”. O ministério destaca que o uso deste conceito permite:
(i) visualizar a cadeia de modo integral; (ii) identificar debilidades e potencialidades nos elos; (iii) motivar articulação solidária dos elos; (iv) identificar gargalos, elos faltantes e estrangulamentos; (v) identificar os elos dinâmicos, em adição à compreensão dos mercados, que trazem movimento às transações na cadeia produtiva; (vi) maximizar a eficácia político-administrativa por meio do consenso em torno dos agentes envolvidos; (vii) identificar fatores e condicionantes da competitividade em cada segmento.
Esta definição, embora correta do ponto de vista econômico e administrativo, deixa de destacar os aspectos de direitos humanos e ambientais envolvidos nas chamadas cadeias de valor. Se é possível “motivar articulação solidária dos elos” em busca de uma maior eficácia para maximizar a rentabilidade, a consciência dessa rede deveria também produzir uma maior eficácia na fiscalização e aplicação das leis trabalhistas, ambientais e de terras.
A importância de pensar as cadeias produtivas ou cadeias de valor na perspectiva dos direitos humanos é que este conceito permite buscar transparência nas relações humanas e nos processos envolvidos em cada produto que circula na sociedade, aí incluídas todas as etapas que antecedem a comercialização da mercadoria. Isso envolve todos os produtos que corriqueiramente são consumidos nos mercados e lojas de qualquer centro urbano, no Brasil ou no exterior. O que isso significa?
Quando a gente vai a uma loja de roupas, é possível que veja uma situação que parece correta: funcionários e funcionárias contratadas segundo as leis trabalhistas, um ambiente respeitoso e adequado e até um discurso pró-meio ambiente. Agora, como assegurar que o algodão ou o couro que foi matéria-prima para aquelas peças de roupa foi produzido por trabalhadores que tiveram seus direitos plenamente assegurados e que não foi resultado de um tipo predatório de agricultura ou pecuária? Se formos informados de que foi utilizado trabalho informal ou mesmo trabalho escravo na confecção daquelas peças, podemos nos recusar a comprá-las e denunciar essa violação de direitos.
A opacidade (falta de transparência) é um dos principais obstáculos para o combate às violações de direitos humanos que ocorrem em etapas pouco visíveis da produção. Para muitas empresas, pode ser uma estratégia para manter situações lucrativas com um alto custo para pessoas na outra ponta do processo.
Já existem marcos internacionais com o potencial de transformar a cultura corporativa nesse campo. Em junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou por consenso os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, que desde então vêm sendo uma referência para governos, organizações da sociedade civil (OSCs) e empresas.
Há uma tendência de que novas legislações passem a regulamentar as cadeias produtivas criando marcos legais de responsabilidade compartilhada entre empresas e outros atores. Países como Reino Unido e Austrália já avançaram neste sentido, com leis recentes que se inspiram nos Princípios da ONU.
Violações mais frequentes
Entre as violações aos direitos humanos mais frequentes na realidade brasileira estão:
- Relações de trabalho informal, análogas à escravidão, degradantes ou de todo modo incapazes de assegurar a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras e suas famílias. Contratos que vigoram apenas durante a safra com remuneração excessivamente baixa são exemplos de degradação das condições de vida dos trabalhadores.
- A vulnerabilidade das trabalhadoras é, como regra, maior, pois historicamente são elas as responsáveis pelo cuidado com os filhos e com os entes mais velhos da família.
- Práticas de trabalho nocivas à saúde, como a aplicação de agrotóxicos sem equipamentos de proteção adequados.
- Condições de trabalho degradantes, sem acesso suficiente a banheiros, áreas adequadas para alimentação etc.
- Dificultar ou impedir a formação de sindicatos e outras organizações, com perseguição e demissão de lideranças, entre outras formas de abuso e violência.
- Áreas de cultivo agrícola ou de pecuária localizadas em território de populações tradicionais, como povos indígenas e comunidades quilombolas.
- Práticas agrícolas danosas ao meio ambiente.
Transparência e rastreabilidade
A chave para que as cadeias de valor funcionem de maneira positiva na garantia dos direitos humanos e ambientais, em que o direito à terra pode ser um elemento crucial, é a transparência e rastreabilidade. Ou seja, se for possível saber o caminho percorrido por cada produto desde a sua origem até o consumidor final, então será possível fiscalizar e assegurar o pleno cumprimento das leis.
Em muitos países – seja por serem constrangidas pelas leis, seja por suas próprias políticas corporativas –, as empresas comprometem-se a dar plena transparência e rastreabilidade às suas cadeias produtivas. No Brasil, a regra ainda é a opacidade, mesmo no caso de empresas.
O Estado brasileiro tem leis e instituições para combater o trabalho escravo e os crimes ambientais, além da regulação, resolução e mediação de conflitos de terra. Porém, nem sempre esses mecanismos conseguem ser efetivos. Exigir das empresas – sobretudo as maiores, como as megacorporações do setor de alimentos e abastecimento – que tenham uma política de transparência em relação a suas cadeias pode ser tão importante quanto fortalecer as estruturas de Estado.
Diversas são as instituições que se mobilizam em torno da luta pela erradicação dos diversos abusos nas relações trabalhistas e ambientais no campo. Na ponta, estão os sindicatos rurais e movimentos de trabalhadores do campo. Os órgãos de fiscalização, tanto nos próprios ministérios quanto em instituições independentes como o Ministério Público Federal também atuam dentro de suas atribuições e limites.
Somam-se a este esforço as organizações da sociedade civil, nacionais e internacionais, que procuram incidir de diversas maneiras, tanto em campanhas voltadas ao público em geral quanto em esforços de incidência em órgãos do Executivo e do Legislativo. Há ainda a imprensa, que pode e deve exercer o papel de denunciar e dar visibilidade aos crimes e abusos. E, também, diversas pessoas e instituições no meio acadêmico, que produzem conhecimento e informação.
A transparência busca também permitir que os consumidores exerçam pressão sobre as empresas. A criação de solidariedade entre consumidores urbanos e trabalhadores no campo é um elemento chave na efetividade das ações, tanto para pressionar os poderes públicos a cumprirem o seu papel fiscalizador e punitivo dos abusos e a fazerem avançar a legislação quanto para pressionar as grandes empresas a assegurarem relações justas em todas as cadeias de valor das quais participam.
Para saber mais
Para entender a realidade de trabalhadores que têm os seus direitos violados em cadeias de valor bem próximas de todos nós – pois são produtos que consumimos nos mercados –, vale a pena assistir ao filme Frutas Doces, Vidas Amargas, produzido pela Oxfam Brasil. O relatório detalhado com o mesmo título pode ser obtido aqui.
O documento das Nações Unidas citado acima pode ser obtido no site da Conectas, responsável pela publicação desta tradução comentada: Empresas e Direitos Humanos: Parâmetros da ONU para Proteger, Respeitar e Reparar.